terça-feira, 23 de junho de 2009

As mãos


O rapaz olhou para as mãos vazias, observou os dedos, os vãos dos dedos e meditou sobre os fatos recentes, sobre os acontecimentos, fatos que não saíam da sua mente, povoavam a sua existência; deitava pensando no que acontecera e levantava com os mesmos pensamentos, além disso, durante o sono imagens desconexas se apoderavam de seus sonhos, cenas que remetiam às atrocidades cometidas, à violência que petrifica, à morte que aprisiona e liberta… Mudo, atormentado, vivia à sombra de lembranças, vivia perseguido por fantasmas imaginários, por imagens atrozes, assoladoras.

Ao observar as mãos pensou como o ser humano pode ser tão cruel, como pode ser tão dominado pela angústia, pela perversidade, pela desilusão, pelo desumano. Como fatos corriqueiros podem levar uma pessoa supostamente normal a cometer determinadas insanidades? Mas a respeito da insanidade, todos estão sujeitos a ela, pois há uma tênue linha que separa as atitudes supostamente “normais” das ditas “anormais”, porém na essência dar vazão à ira, ao irracional é o estado natural do ser humano, as pessoas se deixam cobrir por um véu frio de cordialidade, de respeito, de compreensão, mas na essência querem mesmo é soltar o animal ferido que há dentro de si, deixar a fera rugir alto e com bravura, para afugentar o perigo que está em volta. Todos os dias as pessoas tentam alucinadamente controlar esta fera que deve sempre estar, de acordo com os pressupostos sociais, sob o tapete espesso da convivência social, da hipocrisia, da falta de mostrar o que cada um leva dentro de si… ah, a racionalidade humana!

O que levaria uma pessoa a machucar, a libertar a fera e levar desespero a muitas pessoas? Talvez o desejo de conquistar a autenticidade, de mostrar a real natureza humana… e na cabeça deste jovem era isso que tinha se passado.

Aquelas mãos agora, aparentemente, tão frágeis foram capazes de demonstrar o ódio, a vileza, o desajuste e a irracionalidade do ser humano… um homem pacato, que vivia da sua produção, do seu emprego, nunca se metera com ninguém, apenas vivera a sua própria vida, sem prejudicar pessoa alguma, sem gritar com ninguém, sem se manifestar, sendo apenas uma pessoa imperceptível, discreta… um cidadão na verdadeira acepção da palavra e agora se encontrava naquele local fétido, lúgubre… mas ele merecia, suas mãos frias tinham cometido aqueles abusos, então merecia cada gesto para pagar por seus atos.

A tarde daquele dia fatídico foi apenas o desenlace de algo que já vinha há muito tempo sendo acuado, preparado. Por ser uma pessoa pacata, o rapaz, tímido ao extremo, se deixava dominar por muitas situações e eventualmente era enganado por aqueles que se julgam mais espertos que todos, assim, um dia ela se aproximou dele, ou seja, o nosso rapaz conheceu aquela que aparentemente seria a “mulher da sua vida”, aquela que fora toldada para ele, aquela que o completaria e daria uma nova razão para a sua vida…

Viveu a vida da moça, deixando de lado a sua própria e se viu pela primeira vez na sua existência verdadeiramente feliz, inteiro, se doou, se entregou aos ditames da paixão, do amor e achou em sua maneira simplista de entender e ver o mundo que era realmente correspondido, que a garota nutria o mesmo sentimento por ele. Andavam horas as mãos entrelaçadas, suas mãos fortes ligadas às mãos frágeis da moça. A maciez da mão feminina em contraste com a mão áspera e calejada do moço acostumado a serviços braçais… nesses momentos ele sentia sua mão quente, viva, assim como todo o seu ser. Viveu para a felicidade dela, trabalhou para construir um futuro ao lado dela, trabalhou e trabalhou e mais trabalho, dia e noite ele não se cansava e via que os frutos seriem colhidos com muito carinho, amor e afeto.

Mas a vida não segue como planejamos, podemos planejar tantas ações e de repente vemos como um castelo de areia na praia a onda chegar e fazer com que tudo desmorone, vire nada. Os sonhos são castelos na areia. Uma onda simples em poucos segundos tem a capacidade de transformá-los irreversivelmente ou destruí-los para sempre. Isso aconteceu com os sonhos daquele rapaz, pois todos foram desfeitos em pouco tempo. Num breve momento se transformaram em vazio, em pesadelo. Agora querer fugir da realidade de nada adiantaria, onde quer que ele estivesse as imagens, as cenas o seguiriam como um espectro indesejado, estava tentando aprender a viver com aquela companhia constante. Neste contexto ainda vinha sorrateira a saudade que sentia, saudade dos momentos vividos, das promessas que ficaram pelo caminho, do vislumbre de felicidade que tivera. Como a vida muda tão rapidamente…

Naquele dia ele acordou cedo como todos os dias e foi par ao seu trabalho, estava muito feliz, sentia uma euforia, vontade de cantar, de mostrar ao mundo o quanto era feliz, o quanto amava e era amado. Mas nunca podemos mensurar o quanto somos amados, apenas sabemos que amamos, mas muitas vezes o amor nos torna cegos e não percebemos que estamos vivendo um amor unilateral. Assim foi com ele. E o jovem estava prestes a descobrir esta faceta amarga e dolorida da vida. Ele chegou no trabalho e percebeu uma atmosfera diferente, uns risos ocultos, uma ironia velada e em outros momentos escancarada, não entendia do que se tratava, mas sabia que era algo que o envolvia. Logo veio a primeira comprovação. Uns companheiros de trabalho começaram a fazer insinuações sobre o relacionamento dele, uma certa infidelidade…

Ao final daquele dia ele voltou para casa e resolveu visitar a sua amada. Antes não tivesse ido, pois tudo se confirmou, tudo se encaixou em sua mente. A visão que teve o perturbou demais, não podia ser, não a pessoa que ele tanto amava, não aquela que ele vivia dia após dia por ela. Mas a realidade é dura. E realmente era a garota que estava com outro homem, a garota que estava a se despedir no portão de uma pessoa que ele nunca havia visto anteriormente, neste momento ele olhou para as suas mãos e as colocou sobre a cabeça, estava servindo de chacota a todos e não podia ser ele a amava tanto…

Os olhares se cruzaram, três pares de olhos, cada um com um sentimento diferente, havia desespero no olhar do rapaz, medo no da moça e ironia no do amante. Os momentos que se sucederam foram permeados por angústia, uma ausência, um vazio… ele se deixou ficar por uns instantes mudo pelo sofrimento, pela traição, pela desilusão. Girou sobre os calcanhares e se foi, sem uma única palavra…

Ao chegar em casa, deixou-se invadir por uma dor dilacerante, chorou por ele, por sua vida, pela falta de acreditar em tudo e por acreditar demais. Após muitas lágrimas, enfim caiu num sono entrecortado pela imagem dela sempre de costas p ele, hora ou outra apenas se virava p ele e sorria o mesmo sorriso do amante, um sarcasmo, uma ironia e neste momento ele acordava e era dominado por uma onda de ódio, repulsa. Após algumas tentativas infrutíferas de um sono tranqüilo, resolveu por fim levantar-se, pegou uma garrafa de um uísque barato q jazia há muito tempo no canto de seu quarto e bebeu sofregamente, sem se preocupar com copos. Sentou-se na cama ainda com a garrafa nas mãos. Olhou para o líquido e sorveu mais um longo gole, deixou a garrafa ao lado da cama, olhou demoradamente as mãos que tremiam e resolveu agir…

Por três dias não compareceu no trabalho, estava ocupado demais… à espreita do momento certo, da oportunidade. E ela chegou no terceiro dia. O amante chegou na casa da garota. Era o momento de entrar em ação. Esperou por quinze minutos e resolveu entrar. Foi direto ao quarto. Encontrou exatamente a cena que havia se preparado para encontrar e dominado por um ódio mortal, desferiu um tiro em cada um dos amantes. Não satisfeito, desferiu o restante dos projéteis no corpo já inerte do amante, recarregou a arma e a descarregou sobre a garota. Os olhos estavam secos, as mãos se deixaram cair ao longo do corpo e ele soltou a arma, puxou uma cadeira ao lado do telefone e ligou para a polícia. Esperou a chegada dos policiais sem se mexer na mesma cadeira apenas observava por hora as próprias mãos e noutros momentos fixava o olhar nos corpos abraçados, inertes sobre a cama…

Por: Edi Souza

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